ato cem e vinte.




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odeio acordar e não ter um chinelo na beirada da cama. odeio sair do banho e não ter um pano pra secar meus pés. odeio perguntas constrangedoras. odeio gente que abraça de lado. odeio gente me julga por eu ouvir funk. odeio gente que se acha inteligente. odeio gente que disputa quantos livros já leu. odeio gente que odeia filmes dublados. odeio gente que tenta adivinhar minhas respostas ou ações. odeio cagar e não ter papel. odeio água gelada. odeio sair de casa menstruada. odeio esperar respostas. odeio ver minhas coisas mexidas por terceiros. odeio que olhem minhas mensagens. odeio que peguem meus doces. odeio dormir sem dois travesseiros. odeio saudade. odeio banho frio. odeio rapaz que olha mulher como se ela fosse um bife. odeio velho que paga conta no horário do almoço. odeio fila de cinema. odeio acordar cedo. odeio pegar o tubo-de-pasta e saber que apertaram no meio. odeio sabonete em barra. odeio toddy. odeio algumas palavras. odeio a frase 'no tempo certo vai acontecer'. odeio gente sem iniciativa. odeio mimimi desenfreado. odeio não-me-toque-não-me-reles. odeio gente que corrigi meu dialeto. 
é.

me-dô.




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ela não o conhecia, era o vigésimo encontro, mas ela ainda nem sabia qual foi a primeira música que ele aprendeu a tocar e ele ainda não tinha percebido que ela comia as coisas de trás pra frente. ele a encontrava todo sábado e ainda ficava na dúvida do que ela fazia nas terças e ela nem imaginava como eram as quarta dele. era o começo ou então o meio de tudo, detalhe pouco importante. no começo ele tinha medo dela descobrir que ele dormia com meias de bolinha, enquanto ela se preocupava com a ideia dele perceber sua mania de lavar as mãos toda hora. 
todo mundo é assim, fica com medo de mostrar suas falhas, seus defeitos, suas manias, suas neuroses e coisas do tipo. ficam com medo porque acham que todas essas coisas são ruins, mas há gente tão estranha por ai que é capaz de ver toda essa bagunça com olhar de graça e achar graça. do mesmo jeito que fazemos com os outros. o ser humano é estranho, por isso é tão atraente.
ele passou a visitá-la nas terças e descobriu que ela ficava em casa, com meias de bolinhas amarelas, lendo. ela saiu da faculdade e foi passar a quarta com ele e percebeu que ele lava as mãos com a mesma frequência que ela. ele tocou pra ela a primeira música que saiu de seu violão e ela o ensinou a comer de trás pra frente. 
(...)

um dedo de prosa [65]




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Ela: andei falando de você.
Ele: por que?
Ela: precisava de um assunto.
Ele: com tanto assunto bom por aí ...
Ela: eu escolhi o melhor que tinha.

ser lembrada.



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intimidade a gente não compra ou troca, ela acontece na hora e do que jeito que quer e nem escolhe com quem vai ser. pode vir com o dia-a-dia ou então com o desejo de bom dia que rola quando nos encontramos com alguém. há níveis diferentes para pessoas diferentes. as pessoas estão sempre confundindo alho com baralho, querem apostar numa coisa que nem é delas e perdem o jogo por medo de passar a vez.
 deixar a pessoa ser quem ela é ou quem ela quer ser é uma demonstração de afeto sem medida. não tentar adivinhar o que a outra pessoa deseja é dar a ela a liberdade de escolher. ficar com medo das reações alheias é perder o elemento surpresa que acelera as batidas do coração.
não se apresse em conhecer todos os gostos, medos, desejos, sonhos e planos do outro. faça com que cada descoberta seja celebrada com dignidade. porque depois que se explora tudo, perde-se a graça e a vontade. 
 não tome as pessoas por você, pois nem todos vieram do mesma forma.

só Ri, tá?



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guilherme estava parado embaixo da marquise de uma loja antiga, esperando a chuva passar. não queria molhar sua camisa nova. foi quando rita apareceu, passou pela calçada girando a sobrinha, como sempre teve costume de fazer. não só molhou como manchou a camisa do rapaz fresco que ali estava. 'VOCÊ É LOUCA?' 'eu te conheço?' 'OLHA SÓ O QUE VOCÊ FEZ NA MINHA CAMISA!' 'grandes merda' 'SÁCAMISA É NOVA E CUSTOU METADE DO MEU SALÁRIO' 'sorte a sua' 'ONDE TU PENSA QUE VAI? VOLTE AQUI!' ... 'QUAL SEU NOME?' 'ri, tá?' e lá ficou ele, sem saber se era o nome dela ou uma tirada irônica do destino.

interpretar a ação.



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no começo eu pensava que a frase: 'até que a morte nos separe', dita no final de vários votos de casamento, se referia a morte morte de algum dos dois, mas com o passar dos anos e dos relacionamentos fui chegando a outra conclusão.
 a morte física é pequena se comparada com a morte do respeito, porque sem respeito a gente não convive.
a morte física é imperceptível se comparada com a morte da cumplicidade, porque sem cumplicidade a gente tá só.
a morte física é insignificante se comparada com a morte da confiança, porque sem confiança não existe relacionamento e sim lamento.
a morte física é aconchegante se comparada  com a morte do abraço, porque sem abraço o sentimento não transferido.
a morte física é um alívio se comparada com a morte do desejo, porque sem desejo só sobra obrigação.
a morte física é indolor se comparada com a morte do amor, porque sem amor todos os outros sentimentos são só sentimentos.

um ponto e duas vistas.



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a olhos nu:
não tem garantia. não tem amor. não tem sexo. não tem promessa. não é o momento certo. sobra diferenças. não tem certeza. não tem contrato. não tem regra. não se te conhecimento ou qualquer outra coisa que se usa como desculpa justificativa para aceitar um relacionamento.
com óculos-cor-de-rosa:
não falta vontade de ficar junto. não falta carinho. não falta beijinho/beijo/beijão. não há vontade de desabraçar. não falta assunto. não falta planos. não falta trilha sonora. não falta colo. não falta o desejo. não falta aprendizado. não falta filme. não falta passeio. não falta destino ou qualquer outra coisa que se tem quando se é par.

cada um enxerga como quer.

um dedo de prosa [64]




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Ela: comprei um pingente pra te lembrar.
Ele: mas isso daí é um M!
Ela: que que tem?
Ele: meu nome começa com V!
Ela: é que é M de Mozão, pô!